Política brasileira errada gera efusão monstruosa de sangue
Nem PT, nem PSDB, nem PMDB… Nenhum partido político até hoje deixou de ser estelionatário frente ao povo no campo da política de segurança, que visa a controlar a violência e a criminalidade. Fazem tudo errado e quem planta o errado colhe o amargo. De ilusão em ilusão, chegamos ao mar de sangue que nos distingue: 15º país mais violento do planeta, 16 das 50 cidades mais sangrentas do mundo, 53 mil assassinatos por ano etc. Onde está o erro: violência se combate com educação e ética, escolaridade e aumento da renda per capita. Mas enquanto somente morrem pobres, isso não conta absolutamente nada para o poder dominante. Enquanto policial mata jovem negro e o crime organizado mata policial, nada acontece: é pobre matando pobre (uma “faxina” indiferente para quem efetivamente manda no país e no mundo). Quem nunca se importou com milhares de pessoas morrendo de fome diariamente no mundo, não perde um minuto de sono pelé efusão do sangue de mais 50 mil pessoas assassinadas num país de quinta categoria em matéria de respeito aos direitos do humano.
Por que a política brasileira no combate à violência está errada? Vamos lá (se você for curioso e paciente, vai entender as razões dessa atrocidade): Franz von Liszt (um renomado penalista alemão) sustentou (no século XIX) “que o direito penal seria a barreira intransponível da política criminal”, ou seja, esta não pode se valer da pena (do castigo) para alcançar os objetivos de controle social, de dominação e de poder. Beccaria (o autor do famoso livro Dos delitos e das penas, escrito em 1764) certamente se entristeceria em saber que hoje vale exatamente o oposto, isto é, “o direito penal se transformou em mero instrumento da política criminal, e não no seu limite” (veja Bozza: 2009, p. 184). Em outras palavras: quem detém o poder está usando o direito penal (simbolicamente) para iludir a população que ainda acredita que a pena severa seja suficiente, por si só, para diminuir a criminalidade (ou seja: para evitar a reincidência, para dissuadir os potenciais delinquentes).
No que alguns doutrinadores e o senso comum acreditam? No seguinte: contra o crime temos que reagir com a pena. A eficácia da pena depende de sua capacidade dissuasória, ou seja, da sua gravidade (contemplada nas normas penais). Se existe o crime (sustenta o pensamento estreito) é porque a pena e as leis penais são débeis. Logo, quanto mais severa a pena, mais ela intimidaria as pessoas. Para combater a violência e a criminalidade temos que nos valer de castigos severos (duros), cominados na lei e aplicados e executados contra o delinquente, para intimidar a comunidade (contrariando Kant, instrumentaliza-se o criminoso para servir de exemplo para toda a sociedade; isso, ademais, é ofensivo à dignidade humana, diz Hassemer – em Bozza: 2009, p. 203).
Na utilidade da pena para efeito de intimidação acreditou Beccaria, assim como o liberal Feuerbach (1775-1833), que criou a teoria da “coação psicológica” (o impulso contramotivador da pena tem que ser superior ao prazer e à concupiscência gerados pelo impulso ao delito; o mal da pena tem que ser maior que o desgosto da insatisfação do impulso dirigido ao crime) (veja Bozza: 2009, p. 190). Mas não basta que a pena seja severa em abstrato (na lei). Seu efeito contramotivador (a ameaça) será ineficaz quando não é aplicada e executada. A coação psicológica só acontece quando a pena é efetivamente cumprida. A divergência entre Beccaria e o senso comum é a seguinte: para ele a pena não precisa ser severa, fundamental é que a ameaça se concretize infalivelmente (o mais importante é a certeza do castigo, ainda que seja o mais suave possível). O utilitarista Bentham também acreditava na eficácia dissuasória da pena (é só colocar os dois males nos pratos da balança: o mal da sanção penal e o mal do crime; o primeiro tem que ser menos preferível que o segundo) (veja Bozza: 2009, p. 191-192).
Hassemer diz que o efeito preventivo da ameaça penal seria muito bom se fosse verdade (em Bozza: 209, p. 194 e ss.): as pessoas nem sempre conhecem as normas penais (mesmo porque são muitas as normas penais e não penais vigentes na sociedade – veja Baratta e a teoria das subculturas criminais) e, ademais, a capacidade motivadora da norma penal depende de uma série enorme de fatores (que ela seja aceita, que ela não contrarie outras normais sociais, que ela seja conhecida, que seja devidamente aplicada e executada, que o indivíduo seja racional etc.). A investigação realizada pela sociologia demonstra que na sociedade moderna existem valores e regras específicas de grupos diversos, que concorrem com valores e regras comuns; muitos, de outro lado, ainda desenvolvem técnicas de neutralização (para justificar seus comportamentos). Exemplo: o sonegador diz que o Estado cobra imposto muito alto.
Seguindo a síntese de Bozza (2009, p. 204 e ss.) cabe ainda acrescentar que o risco de se confiar na ameaça e execução da pena como instrumento de prevenção do delito consiste (como diz Stratenwerth) na utilização do direito penal para aumentar as penas, quando outras medidas se apresentam como mais eficazes; a pena nesse sistema, de acordo com Cirino dos Santos, pode ser usada como terrorismo estatal e, de outro lado, não tem nenhuma valia nos crimes impulsivos (homicídio e crimes sexuais, por exemplo); é muito grande a cifra negra (crimes não registrados), o que comprova a (pelo menos parcial) desnecessidade do sistema para a manutenção do controle social; mais leis, mais castigos, mais juízes, mais policiais (como diz Jeffery, citado por García-Pablos de Molina) não significam necessariamente menos crimes.
As conclusões de Bozza (2009, p. 205 e ss.) são as seguintes: (a) apesar das críticas, muitas políticas criminais contemporâneas (penais) respondem a esse modelo falacioso e simplificador que é a teoria da prevenção geral negativa, que manipula o sentimento de medo da população para ocultar o fracasso de medidas sociais preventivas da comunidade; (b) a inflação legislativa penal decorre da chamada democracia de opinião (Garapon e Salas), que exalta a percepção emocional do sujeito reduzida a suas emoções mais elementares: o medo e o rancor; (c) muitas políticas criminais contemporâneas articulam-se sobre essas emoções (são, portanto, puramente simbólicas); (d) o sistema penal clássico é usado para assegurar as desigualdades nas relações sociais (seleciona os “não proprietários”); (e) o sistema penal da sociedade de risco é utilizado para proteger bens jurídicos supraindividuais (ambiente, consumidor, crimes econômicos etc.), ou seja, para selecionar e punir os poderosos, “os proprietários” (que massacram as classes desfavorecidas). Mas estaria o direito penal punindo os verdadeiros donos do capitalismo financeiro (os grandes conglomerados multinacionais do império capitalista mundial)?
Sintetizando: a partir da função de prevenção geral negativa podemos delinear dois modelos de política criminal (política penal): (a) o centrado na severidade da pena e (b) o fundado na “certeza do castigo”. O primeiro conta com ampla aceitação, porque totalmente compatível com a política populista-midiática (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013). O segundo foi defendido por Beccaria (em 1764) que, no entanto, ainda propugnava pela prevenção social (medidas socioeconômicas/educativas). Os dois primeiros confiam na prevenção penal, por meio do castigo (prevenção pela repressão). O terceiro se preocupa com as causas do delito, indo à raiz do problema (prevenção primária). Existem ainda modelos híbridos, que fazem combinações bastante eficientes.
Há países que combinam a prevenção social com a certeza do castigo: são os chamados por mim de “escandinavizados”: Suécia, Noruega, Coreia do Sul, Japão, Alemanha, Nova Zelândia, Austrália, Islândia, Finlândia etc. Não é a severidade da pena que conta, sim, a certeza do castigo (ou seja: a burocracia criminal funciona bem) combinada com uma excelente política social (alto nível de escolaridade mais elevada renda per capita). É a política criminal que mais se aproxima do modelo desenhado por Beccaria, em 1764. Resultado: 1 assassinato em média para cada 100 mil pessoas.
Outros países confiam na severidade da pena e contam com boa eficácia na certeza do castigo, mas falham enormemente na prevenção social e ainda se distinguem pela desigualdade extrema, violações massivas aos direitos humanos, encarceramento massivo aloprado etc. Exemplo: EUA. Resultado: 5 assassinatos para cada 100 mil pessoas.
Os países político-criminalmente fracassados (Brasil, por exemplo) são os que não praticam nenhum tipo de prevenção social (melhoria substancial das condições de vida da população mais educação de qualidade) e tampouco contam com estrutura burocrática eficiente para garantir a certeza do castigo (ou seja: o império da lei repressiva). A esses países só resta iludir a população com o primeiro modelo, o da severidade da pena, que se caracteriza: (a) pela instauração do clima de guerra e de medo, (b) pela predisposição da população inculta e desesperada a apoiar inclusive as medidas irracionais dos governantes (a barbárie), (c) pela edição aloprada de penas novas mais severas (legislação simbólica), (d) pelo encarceramento massivo sem critério adequado, (e) pelo afrouxamento do controle das instituições repressivas, (f) pela cultura da violação massiva dos direitos humanos e (g) pelo desrespeito ao devido processo legal e proporcional. Resultado: 27 assassinatos para cada 100 mil pessoas, 15º país mais violento do planeta, tem 16 das 50 cidades mais violentas do mundo, 53 mil homicídios por ano, mais de 130 por dia etc. Quem planta errado, corre frutos amargos. Estamos no caminho totalmente equivocado em termos de política criminal (daí a efusão de sangue por todos os lados).
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