Livro do mês - "Claro enigma", de Carlos Drummond de Andrade
Além de sua óbvia importância para as nossas letras, a obra de Carlos Drummond de Andrade possui um caráter didático, que ilustra bem os dilemas próprios ao poeta do século XX. Se sua complexidade torna qualquer rótulo incompleto, quando não equivocado, o que se pode tentar, ainda mais num espaço exíguo como este, é apontar alguns elementos desse projeto literário, que, somados a alguns instantâneos da obra, possam despertar o interesse em novas visitas a esse autor fundamental.Livro do mês - "Claro enigma", de Carlos Drummond de Andrade II
"Claro enigma" (1951) é a obra de um poeta maduro, num momento fundamental de sua trajetória. Ela se iniciara nos anos 1920, ainda envolta numa articulação passadista, de base simbolista, que foi predominante no país no começo do século, e vai incorporar ao longo da década as conquistas modernistas que ganharão forma definitiva em sua estreia em livro, com "Alguma poesia", em 1930. Entre esta sua primeira coletânea e "Claro enigma", Drummond firmaria seu projeto poético em obras tão particulares quanto distintas entre si, como "A rosa do povo", "Sentimento do mundo" e "Brejo das almas".Livro do mês - "Claro enigma", de Carlos Drummond de Andrade III
Três elementos são imediatamente identificáveis quando nos debruçamos sobre "Claro enigma": a diversidade temática, anunciada em suas subdivisões; a utilização de formas clássicas como o soneto e a utilização do metro; um tom grave e elevado que marca boa parte de sua articulação. E não é pouco. Não quando relembramos as conquistas modernistas, o embate travado em nossas letras para se superar modos de representação que não eram mais capazes de dar conta do país que ganha corpo nos primeiros anos do século XX, e o quanto Drummond consegue em meio a essas tensões estabelecer uma articulação própria, única.Livro do mês - "Claro enigma", de Carlos Drummond de Andrade IV
O projeto de Drummond nesta obra é mais ambicioso do que um simples retorno a um passado próximo e aparentemente superado. O poeta irá estabelecer vínculos mais profundos, diretamente com os pilares da tradição ocidental. O diálogo se dará com Dante, com Camões. É o que fica nítido no impressionante "A máquina do mundo", com as aproximações entre o andarilho que no "fecho da tarde" se depara com a máquina e o peregrino dos primeiros versos da "Divina comédia", ou em seu esquema de versos. Ao mesmo tempo, a máquina em si é como uma nova versão do "globo uniforme, perfeito, em si sustido", que Vasco da Gama tem acesso por meio da deusa Tétis, em "Os lusíadas" – a ideia de um único objeto que contenha o mundo.Livro do mês - "Claro enigma", de Carlos Drummond de Andrade V
Mas não é apenas essa articulação
enigmática, metafísica, que se faz presente em "Claro enigma". Ele se
abre à lírica romântica em momentos preciosos como "Tarde de maio", peça
da segunda seção da obra "Notícias amorosas". Seu primeiro verso dá a
ver um aspecto mítico, que remete aos amuletos de antigas civilizações,
metaforizando o apreço por uma tarde outonal: "Como esses primitivos que
carregam por toda a parte o maxilar/ inferior de seus mortos,/ assim te
levo comigo tarde de maio". Enquanto seu desfecho adensa em verso sua
compreensão melancólica das coisas do mundo, entre elas o amor: "O
próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;/ não está certo de
ser amor, há tanto lavou a memória/das impurezas de barro e folha em
que repousava. E resta,/ perdida no ar, por que melhor se conserve,/uma
particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.". São exemplos
breves, que apenas anunciam o que a obra pode ofertar. Portas de entrada
para uma leitura mais atenta, que cabe ao leitor interessado praticar.
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