"Guerra e paz" e quando traduzir é uma traição
Por um longo período, o leitor brasileiro foi mantido apartado de uma fatia considerável da produção literária internacional. Não somente pela ausência de traduções para o português, mas por edições que suprimiam trechos de obras, e quando se tratava de títulos originalmente escritos em idiomas menos conhecidos, realizadas a partir de versões, na maior parte, francesas.
"Guerra e paz" e quando traduzir é uma traição II
O procedimento, que em princípio pode parecer inofensivo, tem implicações estéticas, políticas e sociais que valem a pena ser sublinhadas. O caso de “Guerra e Paz” (Cosac Naify, em dois volumes, R$ 198), de Liev Tolstói – que acaba de ser lançado em sua primeira edição brasileira traduzida diretamente do russo –, assim como de boa parte de autores conterrâneos a ele, é emblemático. E corroboram as observações de Jorge Luis Borges em “Os tradutores das Mil e uma noites”, em que discorre sobre as versões ocidentais para o clássico do século XIII.
"Guerra e paz" e quando traduzir é uma traição III
Para esses tradutores, mais do que a transposição de um texto-origem para um texto final, traduzir é um ato de afirmação de uma série de convenções estéticas, que em última análise afirma o próprio gênero em questão. O romance, por exemplo, como uma invenção burguesa tinha parâmetros e regras que precisavam (segundo essa visão) ser preservados quando se adaptava uma obra de outra cultura. Desse modo, “Guerra e Paz”, obra que questiona a noção de romance vigente (Tolstói nem considerava a obra um romance), voltada ao leitor local (em contraste a ideia que se tem de um texto de parâmetros universais), acaba gerando versões que se chocam com sua concepção original.
"Guerra e paz" e quando traduzir é uma traição IV
Intromissões do narrador, repetição de palavras e períodos longos sem pontuação são suprimidos, de modo a não romper o contrato que rege autor-leitor segundo a cartilha de seus adaptadores. Alterações de cunho autoral como essas irão se repetir com freqüência, como um modelo de política cultural, em que o periférico, o que não faz parte do eixo central do cânone ocidental, precisa ser reordenado para que possa circular sem causar ruído, ou opção ao projeto vigente.
"Guerra e paz" e quando traduzir é uma traição V
Durante décadas o mercado brasileiro viveu de versões locais desse processo. Uma cópia de originais adulterados, que nos fez associar a diversos autores fundamentais características estranhas ao corpo de seu trabalho. Mais de 100 anos após a morte de Tolstói esse é o melhor presente que poderíamos imaginar para reaprender a pluralidade das manifestações culturais. Num tempo de padronização, em que vampiros passam a lua de mel no Rio de Janeiro, não é pouca coisa. “O Globo” trouxe no último sábado uma entrevista com o brilhante Rubens Figueiredo, tradutor da obra. Ele conta um pouco do processo que lhe consumiu 3 anos no link aqui embaixo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário